Restauração no Cerrado: savana é diferente de floresta e preservar suas particularidades é determinante para resiliência climática

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Práticas de florestamento adotadas na Mata Atlântica podem levar a resultados prejudiciais e de baixa eficiência para manutenção dos serviços ecossistêmicos do segundo maior bioma brasileiro: o Cerrado.

O Brasil abriga uma riqueza extraordinária de biomas, cada um possui características únicas e uma importância vital para a preservação da biodiversidade, dos recursos e ciclos naturais. O Cerrado e a Mata Atlântica são reconhecidos mundialmente por sua diversidade biológica e pelos serviços ecossistêmicos que oferecem. No entanto, a Mata Atlântica, devido à sua posição geográfica e também seu histórico, uma vez que desde o início da colonização , vem sendo explorada, haja vista o Pau brasil, espécie de grande interesse econômico que quase foi à extinção.

Com esse histórico, os processos de restauração conhecidos no Brasil são sempre espelhados na forma de restaurar esse bioma, que é composto de árvores e possui um processo de sucessão entre elas. Tais técnicas de restauração consolidadas para a Mata Atlântica, foram, por muito tempo, direcionadas para o Cerrado. Ao generalizar as práticas de restauração para os dois biomas, o Cerrado não alcança efetividade no reflorestamento e na restauração. O segundo maior bioma brasileiro e berço das águas tem papel fundamental na conservação da biodiversidade e um grande desafio: driblar as ameaças climáticas enfrentando o grande preconceito de ser Savana e sem que precise se transformar em uma grande floresta.

A questão é como isso deve ser feito e, para isso, o Consórcio Cerrado das Águas (CCA) conversou com dois profissionais especializados em restauração no Cerrado para ampliar a percepção dos caminhos que precisam ser adotados para este fim.

“No Cerrado há áreas de floresta, as matas de galeria, as matas secas e outras, que se assemelham à Mata Atlântica, mas quando tratamos dos campos e savanas são ecossistemas completamente distintos. Nas florestas o recurso limitante é a luz, no Cerrado é a água e os nutrientes do solo. Nas florestas não deve haver fogo, nos campos e savanas o fogo é imprescindível para manter a diversidade e funcionamento dos ecossistemas. Nas florestas, a biomassa e o carbono estão no tronco das árvores. Nos campos e savanas, a biomassa está mais nas raízes e o carbono está no solo. A regeneração das plantas da floresta é principalmente pelas sementes, nos campos e savanas é pela rebrota das raízes, entre outras particularidades. São ecossistemas muito distintos que se tratados da mesma forma para planejar a restauração, certamente haverá insucesso e desperdício de recursos”, esclarece Alexandre Sampaio, engenheiro florestal PHD em Ecologia e analista ambiental da ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

Para o pesquisador, o primeiro fator de entendimento é que os campos e savanas são caracterizados por um estrato contínuo de plantas baixas, como gramíneas e é neste estrato que está a diversidade de plantas responsável por boa parte do funcionamento do ecossistema, sequestro de carbono e infiltração de água no solo. Sobre a abordagem da restauração do Cerrado com, somente, plantio de árvores, Alexandre faz um alerta. “Há árvores nas savanas, mas se plantarmos apenas árvores, não estamos restaurando o ecossistema original, estaremos perdendo o estrato mais importante das plantas pequenas. Nos campos e savanas as sementes são menos importantes para a regeneração, muitas são vazias e inviáveis, por isso a dispersão de sementes é pequena e a regeneração natural pelas sementes é baixa, mas se os campos e savanas forem desmatados sem mexer no solo, as raízes são capazes de trazer de volta toda a diversidade de plantas’, considera ele.

Reflorestamento no Cerrado e o equívoco do “aflorestamento”
Ao contrário da Mata Atlântica, onde a restauração frequentemente envolve o plantio de árvores de grande porte, o Cerrado é caracterizado por uma vegetação mais baixa e esparsa, composta por gramíneas, arbustos e árvores menores. Portanto, o reflorestamento do Cerrado exige uma abordagem adaptada às suas características específicas. A utilização de sementes e mudas de espécies nativas do Cerrado é fundamental para a reintrodução da vegetação original. Além disso, a criação de corredores ecológicos e a promoção da conectividade entre áreas preservadas são estratégias importantes para a restauração bem-sucedida do Cerrado, permitindo o fluxo de espécies e a recuperação de habitats fragmentados.

“O principal equívoco que ocorre, por mais absurdo que pareça, é quando os restauradores olham para campos e savanas que foram convertidos em agricultura e pasto e decidem por apenas plantar árvores na tentativa de plantar florestas. Se árvores de florestas forem ali plantadas, não serão capazes de se reproduzirem, devido ao período da seca e, se conseguirem se desenvolver, têm grande chance de morrerem quando ocorrer um incêndio, muito provável de acontecer, pois o crescimento das árvores dificilmente formará um dossel capaz de eliminar as gramíneas exóticas, que são excelente combustível para o fogo. Pior ainda, mas também comum, é quando pessoas sem conhecimento local olham uma área de campo nativo onde naturalmente não há árvores e decidem plantar árvores ali. Para plantar essas árvores, que provavelmente vão morrer ao longo dos anos, será necessário arrancar plantas nativas, sempre causando mais impacto do que benefício. Parece improvável tamanho desconhecimento, mas continua a acontecer em vários lugares do Cerrado, um fenômeno que tem até nome: aflorestamento”, analisa Alexandre.

A pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paula, Dra. Giselda Durigan, afirma que no Cerrado as árvores devem ser coadjuvantes e não dominantes, isso porque o Cerrado tem uma estrutura caracterizada por árvores esparsas e um estrato rasteiro dominado por capins recobrindo o chão. Para ela, se o Cerrado se transformar em uma grande área florestal, com a chamada área de sucessão, há consequências negativas.

“Se o adensamento (florestal) acontecer no Cerrado, as consequências negativas para o bioma serão dramáticas em termos de perda de espécies endêmicas da flora e da fauna e, além disso, será severamente comprometido o principal serviço ecossistêmico associado à vegetação savânica, que é a recarga de reservas de água subterrânea e o abastecimento das nascentes e dos rios na maior parte do Brasil. Isso ocorreria porque florestas interceptam em suas copas cerca de 30% da chuva e retiram muito mais água do solo do que a vegetação aberta do Cerrado”, avalia a pesquisadora.

Conexão de paisagens: caminho eficaz para a restauração
O desmatamento no Cerrado acendeu, mais uma vez, o alerta vermelho no primeiro semestre de 2023. O total de alertas de desmate cresceu 21% neste período, o que equivale a 4.408 km², dados divulgados pelo Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter). Na contramão dos números alarmantes, há ações que visam ao reflorestamento adequado e trazem esperanças para a conservação desse importante bioma. Uma dessas ações é a conectividade de paisagens, unindo as áreas naturais remanescentes do Cerrado. Contudo, há desafios que precisam ser vencidos para que isto ocorra, como conta Giselda.

“A conectividade entre as áreas remanescentes depende do uso da terra que as separa. Quanto menos semelhante for a estrutura da vegetação cultivada à estrutura da vegetação de savana (plantas lenhosas esparsas sobre o estrato rasteiro graminoso), mais grave será o isolamento. A agricultura é a matriz mais hostil, ou seja, é a que mais fortemente isola os remanescentes do Cerrado. No outro extremo estão as pastagens que não foram intensificadas. Se entre os remanescentes existirem pastagens com árvores e arbustos esparsos, pode-se considerar que os fragmentos de Cerrado continuam conectados para a maior parte da fauna (aves, mamíferos, répteis, formigas e até invertebrados) e da flora. A fauna continua utilizando as pastagens como fonte de alimento e habitat, e as plantas nativas existentes nas pastagens funcionam como stepping-stones para agentes polinizadores e dispersores de sementes. A silvicultura é menos amigável do que as pastagens, mas é bem menos hostil do que a agricultura, especialmente por manter sub-bosque no Cerrado e por ser em intervalos de tempo bem mais longos”, analisa.

A conectividade de paisagens é uma das frentes de trabalho do Consórcio Cerrado das Águas desde 2019 com o PIPC (Programa de Investimento no Produtor Consciente). Com atuação em três bacias hidrográficas na Região do Cerrado Mineiro, o Consórcio desenvolve, juntamente com os produtores rurais, ações de conservação e restauração da vegetação nativa nas propriedades. A necessidade de ações para restauração e conservação é um dos principais fatores do PIPC, já que elas têm o maior impacto nos serviços ecossistêmicos, especialmente aquelas de conservação. Ao todo são hectares de mata nativa em processo de restauração. Para a Secretária Executiva do CCA, Fabiane Sebaio, o entendimento das dinâmicas do Cerrado e das técnicas para restaurar as Savanas são essenciais para a manutenção do título de Berço das Águas, nome dado ao Cerrado por ser o bioma que abastece as três grande bacias hidrográficas do Brasil.

Para a pesquisadora Giselda, há possibilidades para se buscar uma paisagem mais amigável no Cerrado para minimizar as consequências da fragmentação e, para isso, ela faz duas recomendações principais: manter (ou restaurar) as faixas de preservação permanente com vegetação nativa e isso compreende não só mata ciliar, mas campos úmidos, veredas, e até uma parte de vegetação aberta de Cerrado; e conectar os fragmentos remanescentes entre si e com a zona ripária por corredores de pastagem ou de vegetação restaurada com estrutura de savana (árvores e arbustos esparsos e um estrato rasteiro predominantemente formado por gramíneas nativas), conclui Durigan que estuda a restauração no Cerrado há mais de 30 anos.

“Sabe-se que a vegetação nativa do Cerrado possui raízes que captam água em grandes profundidades, caules subterrâneos que armazenam água, além de folhas espessas e com a presença de pelos que diminuem a perda de água. Associamos as raízes do Cerrado a verdadeiras esponjas, pois quando chove elas levam a água absorvida para os lençóis freáticos. Por isso, transformar o Cerrado em uma grande floresta irá trazer grandes prejuízos. Quando a vegetação do Cerrado é substitumanejada ída por plantas com raízes menores, afeta os recursos hídricos”, conclui Mariana Cristina, analista de paisagens conectadas do CCA.

Sobre o CCA
Criado em 2015, em Patrocínio – MG, o Consórcio Cerrado das Águas tem como objetivo agregar esforços para a implementação de estratégias que garantam a provisão de serviços ecossistêmicos a fim de alcançar um sistema produtivo resiliente às mudanças climáticas.

A iniciativa possui como membros associados as seguintes empresas: Nescafé, Expocaccer, Nespresso, Lavazza, Cooxupé, CofCo, Volcafé, Stockler, Daterra, Federação dos Cafeicultores do Cerrado e CerVivo. Além disso, a plataforma possui os parceiros-chaves como Prefeitura de Municipal de Serra do Salitre e Prefeitura Municipal de Coromandel.
Saiba mais acessando: http://cerradodasaguas.org.br

Fonte: Assessoria de Imprensa CCA