O café que dá tchan ao blend

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Café no Velho Continente é altamente valorizado (Foto: Editora Globo / Marcelo Min)

O relógio batia na casa de 4 da tarde e os termômetros nos 5 graus. Em alguns minutos mais e graus a menos, as ruas de Amsterdã, a capital mais inquieta da Europa, ficaria empanturrada de gente. Turistas e nativos começavam a lotar o centro da cidade procurando diversão, cultura, boa comida e, claro, um café, bebida que, faça sol, chuva ou neve, não passa despercebida no Velho Continente. Só que, para agradar o gosto desse exigente freguês, a bebida precisa ser especial, e isso não quer dizer que basta ter qualidade, característica sempre exigida por eles. Na hora de comprar café, o consumidor quer mais e não se importa em pagar 7 euros (R$ 21) por um espresso ou 20 euros, em torno de R$ 62, por 250 gramas de grãos que tenham sido produzidos de forma sustentável em algum canto do mundo.

Quando percebeu que o consumidor tinha essas ideias na cabeça e não estava só olhando para a qualidade, o comerciante Tiago Gawlinski, gaúcho que emigrou para a Holanda em 1991, aproveitou a deixa para faturar. Faz seis anos que ele abriu em Amsterdã uma cafeteria especializada em cafés brasileiros, a Casa Brazuca. “Antes disso, era garçom e os clientes me perguntavam sobre a origem do café e como era produzido. Queriam saber se tinha agrotóxicos”, contou Gawlinski, ao receber a equipe de GLOBO RURAL numa de suas duas lojas. “Tem clientes que vêm de outros bairros para comprar café que não lhes ofereça risco à saúde.”

O brasileiro diz que 90% dos frequentadores da loja têm essa preocupação. “Pedem café orgânico, certificado, livre de agrotóxicos.” Às vezes, diz ele, a exigência do cliente é tanta que eles mudam o jeito de consumir. “Começaram a pedir que eu vendesse grãos torrados e moídos para fazerem café em casa.” Gawlinski tem numa das lojas uma minitorrefatora com capacidade para 2 quilos de café. Em abril de 2014, investiu em outra empresa. “Abri uma torrefatora maior para atender à demanda.” Com o investimento, ele passou a beneficiar 35 quilos de café por dia e já pensa em expandir o negócio. Na Casa Brazuca, o pacote de 250 gramas mais barato sai por 6 euros (R$ 18), ou 22 euros o quilo (R$ 66), e o mais caro (e mais vendido, em embalagens de 250 gramas) por 19,50 euros (R$ 60). Um espresso custa 3,40 euros (R$ 10).

Tomar café é ritual
Enquanto o Brasil vive a febre das máquinas de café domésticas, na Europa (que já passou por essa tendência), a tradição de fazer café em casa está em alta. Paula Koelemij, gerente de uma das torrefatoras mais antigas da Europa, a Simon Lévelt, acredita que a mudança no hábito de consumo está ligada à conscientização da população europeia em relação à saúde e à preservação do meio ambiente. “Eles não querem tomar café nos escritórios e empresas (os cafés de máquina) porque são muito fortes. No trabalho, tomam chá e deixam para tomar café em casa”, conta. “Um café com a garantia de ter sido produzido de forma saudável.” Paula diz ainda que, apesar de serem exigentes, os clientes ainda não diferenciam, ao pé da letra, o que é orgânico de sustentável. “Não precisa ser orgânico, mas deve ter sido produzido de forma sustentável.”

Segundo ela, que já elaborou enquetes entre os clientes e concluiu que, quanto maior o grau de escolaridade, maior a exigência, a preocupação com a saúde vem em primeiro lugar na hora da compra, mas a conscientização em relação à preservação da natureza nos países produtores cresce. “Você vê as pessoas na loja colocando os smartphones sobre o QR Code (código que permite rastrear a cadeia produtiva do item) para saber a história dos grãos”, afirma. “A demanda está impulsionando o mercado de cafés sustentáveis no mundo.”

Na loja da companhia, que fica em Amstellven, nos arredores da capital, há inúmeros silos com cafés de várias partes do mundo. O vendedor Raymond Broesen diz que os clientes vão à loja fazer o próprio blend e também há aqueles que levam café para casa. “Eles fazem do ato de tomar café um ritual”, diz. Segundo Broesen, os consumidores não chiam na hora de pagar 20 euros por 100 gramas porque já contabilizam o preço da sustentabilidade no bolso. “Estão dispostos a pagar por produtos especiais.”

A Simon Lévelt investe na compra de cafés certificados desde os anos 2000. Hoje, 99% do portfólio da companhia tem selos de certificações como UTZ, RainForest ou FairTrade. “Especialmente no Brasil, trabalhamos com fazendas que têm iniciativas sustentáveis, pois o café brasileiro, para qualquer blend que se faça, é o que dá aquele ‘tchan’, o equilíbrio entre aroma e sabor.”

A primeira empresa holandesa a investir nesse nicho foi a Ahold Coffee Company (ACC), maior torrefatora do país, com capacidade para 20 milhões de quilos de café por ano. Jeroen de Jager, CEO da companhia, afirma que hoje 100% dos negócios fechados lá são baseados em sustentabilidade. “A transparência entre a indústria e o cliente tem de ser cada vez maior. O consumidor final quer essa aproximação, ele exige saber o que está comprando”, afirma.

Faça sol, chuva ou neve, na Holanda sempre é hora de tomar um bom café (Foto: Editora Globo / Marcelo Min)

A ACC é o braço industrial do setor cafeeiro da Ahold Company, que controla 3.074 supermercados, o popular Albert Hejn, na Holanda. É nesta rede varejista que eles distribuem 180 diferentes produtos, feitos a partir de 35 tipos de cafés, que vão do mais comum aos mais requintados. “O consumidor tem opções de comprar qualquer tipo de café, e todos são certificados”, emenda Martijn Duin, gerente de compras de grãos da ACC. “Mesmo que a maioria dos consumidores não saibam exatamente o que significa a certificação, eles sabem que é uma garantia de ter sido produzido com responsabilidade. A rastreabilidade prova isso.”

Para atender à demanda do freguês, Duin compra cafés com certificação do mundo todo, mas principalmente do Brasil, que representa 35% dos cafés produzidos pela ACC. Os demais grãos vêm do Vietnã (15%), América Central (24%), África (11%), Indonésia (9%) e Índia (4%); e 97% dos cafés da ACC têm a certificação UTZ e 3% a FairTrade.

Sustentabilidade tem preço
Em Amstelveen também fica a sede do Grupo Douqué, empresa familiar que compra grãos de café verde mundo afora desde 1895 para vender à Europa. Gert-Jan Kos, especialista em compra e venda da Douqué, diz que a cada ano aumentam os pedidos das torrefatoras europeias por grãos certificados. “É crescente a demanda por grãos com certificação porque ela, por si só, prova ao consumidor final que aquele grão de café é um produto saudável e que foi produzido de forma responsável no Brasil ou em outro país”, diz ele. “O consumidor final confia nas empresas certificadoras, que fazem um trabalho intenso na cadeia produtiva.”

Annette Douqué, sobrinha-neta do fundador da empresa, conta que, como o principal negócio é a compra e venda de grãos arábica verde, o grupo mantém escritórios na Colômbia e no Brasil (em Santos, no litoral paulista) para facilitar as negociações. Annette tem 24 anos, está se especializando em marketing e reforça que os fornecedores de cafés certificados se tornam fiéis e parte essencial do negócio. “É uma via de mão dupla que beneficia o fornecedor, que terá adicionais no preço, e para nós, que entregaremos o grão demandado pela indústria”, diz.

Han de Groot, diretor executivo global da UTZ Certified, diz que não existe prêmio fixo, porque isso depende de fazenda para fazenda. “A certificação foca a qualidade, gestão e rentabilidade das culturas (a UTZ também certifica cacau e chá). Cada frente implementada tem métricas de mensuração e avaliação. Para uma fazenda obter o selo, há protocolos com mais de 150 pontos de controle”, diz Groot. Os controles vão desde o manejo do solo, água, podas, fertilização e treinamento de pessoas até diferenciação de custos por talhão. “O prêmio pago pela sustentabilidade pode variar de R$ 5 a R$ 25 por saca, mas há casos de acréscimos de R$ 100 ou mais.” Annette emenda: “É uma negociação mais vantajosa”.

A UTZ Certified, criada em 1999 pelo guatemalco Nick Bocklandt, atua em 64 países e em torno de 120.000 hectares. De acordo com Groot, nos últimos quatro anos, 82 mil fazendas aderiram ao programa e o mais curioso é que 81% dessas propriedades têm área menor que 2 hectares. Eduardo Sampaio, representante da UTZ no Brasil, estima que aqui sejam produzidos cerca de 4 milhões de sacas de café com o selo, e pelo menos 1,5 milhão de sacas são exportadas para Europa, América do Norte e Ásia – e esse número deve aumentar nos próximos anos.

Sampaio aposta no aumento do número de fazendas certificadas não só no Brasil, mas em todos os países produtores de café, por vários motivos. “Porque é uma forma de os pequenos agricultores, principalmente, agregarem valor ao produto, para compensar os custos de produção, pois o ambiente, por si só, exige manejos mais adequados que protejam os cultivos e porque o mercado comprador lá fora quer. E paga”, diz.

"Antes, era na galega"
Uma das ações da UTZ no Brasil foi firmar parceria com multinacionais para angariar mais adeptos ao selo, sobretudo pequenos produtores de café de alta qualidade. Com a Syngenta, em 2013, criou o programa Caminho Sustentia, que certifica coletivamente fazendas que fazem parte do Nucoffee, programa de exportações da multinacional que existe desde 2011. Por ora, o programa só funciona no Brasil.

Segundo Juan Gimenes, gerente de novos negócios da Syngenta Nucoffee, em 2014, 143 unidades produtivas aderiram ao Caminho Sustentia (120 produtores e oito cooperativas), somando uma área próxima de 4.000 hectares e 100 mil sacas, mas a meta é chegar a 10 mil produtores certificados até 2020 e dobrar a produção de café de alta qualidade, cumprindo o The Good Growth Plan, meta da multinacional que visa incrementar em 1,4% por ano por fazenda o volume de alimentos produzidos. “O valor do café não está apenas na xícara, está na origem”, defende Gimenes. “Buscar mais valor na cadeia produtiva mexe com a vida do produtor. Para melhor.”

A certificação não impõe prêmio fixo, mas, em Minas, as sacas atingiram R$ 1.600
José Wagner Ribeiro Junqueira, de 75 anos, é um dos associados da Cooperativa Regional de Cafeicultores do Vale do Rio Verde (Cocarive), em Carmo de Minas (MG). Sua família produz café nessas terras faz 201 anos e, em 2013, quando colheu 1.500 sacas, ele aderiu ao Caminho Sustentia. “Nessa atividade, eu já vi e já vivi tudo. Os bons momentos e os ruins. Acho que este é um bom momento de novo”, diz o produtor. “Juro, estava quase desistindo.”

Junqueira teme que 2015 seja um ano difícil para o café, devido à seca que atingiu a região no ano passado, mas suas lavouras estão em ótimas condições agronômicas, graças à adoção das boas práticas agrícolas, uma das regras para a UTZ. Kléber de Castro Junqueira, filho de José Wagner, diz que a mudança no manejo e treinamento de pessoal já proporcionou a eles uma economia de 50% só com o uso racional de defensivos químicos. “Uma das coisas que aprendemos foi administrar melhor. Todo fazendeiro tem condições de fazer uma gestão facilitada e com isso cuidar melhor da propriedade, ter mais lucros”, diz.

Na Fazenda Serra das Três Barras, dos Junqueira, as variedades produzidas são bourbon amarelo, catucaí e catuaí. “Conseguimos comercializar essas variedades com valor agregado. Foi a saída para driblarmos os altos custos de produção”, afirma. O irmão de Kléber, Ralph, presidente da Cocarive, lembra que a adesão coletiva à UTZ está fazendo diferença no bolso dos produtores neste começo de 2015. Em 2013, os 661 associados da cooperativa (com média de 10 hectares) produziram 230 mil sacas de variedades arábicas do grão. “Em 2014, o volume caiu para 80 mil sacas”, lamenta. No ano passado, em Carmo de Minas, alguns produtores conseguiram comercializar sacas por até R$ 1.600.

Para incentivar os associados a aderir à sustentabilidade, a Cocarive criou um concurso de qualidade. Em 2014, Maria do Carmo Neiva Junqueira, proprietária do Café do Cedro, teve seu produto valorizado pela primeira vez. “Levamos um tempo para nos adaptar e o início foi muito difícil. Hoje, não vemos como trabalhar de outra forma”, diz ela, se referindo ao modelo de gestão da UTZ. “A meta agora é certificar as quatro fazendas.” A família possui na região seis fazendas e duas são certificadas. Em 2013, foram produzidas 1.300 sacas e muitas foram comercializadas por R$ 1.090.

Roberson Carneiro, gerente da fazenda, conta que em dois anos tudo mudou por lá. “Foi uma revolução. A rotina do trabalho, que era tão complicada, ficou simples. Os gastos eram grandes e agora a economia é maior, porque há controle”, conta o funcionário. Entre as melhorias listadas estão produtividades mais altas, melhores preços, gestão facilitada e aumento na qualidade de vida dos colaboradores. “Antes, era tudo na ‘galega’. Agora, temos direção e vontade de continuar”, afirma Breno Neiva Junqueira, sócio do grupo. “E eu, que achava que sabia tudo sobre café…”

Fonte: Revista Globo Rural

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