Pandemia de coronavírus deve desacelerar “gourmetização” do café

Imprimir
Em 1929, quando houve o colapso de Wall Street e a grande recessão mundial, o governo brasileiro desafiou a Nestlé a criar uma solução para o excedente de café do país. Quase oito anos depois, a empresa suíça lançou o café solúvel, que ficou conhecido no mundo inteiro pelo nome em português. “Foi um período também muito difícil, mas que deu origem a uma inovação do tamanho do café solúvel”, lembra Rachel Muller, diretora de cafés da empresa no Brasil.

Para os brasileiros, mais de 80 anos após o seu lançamento, o café solúvel ainda é apreciado, tendo tido um incremento de 11% no consumo no primeiro quadrimestre deste ano em relação a 2019. Até esta época, o produto representava 100% das vendas da marca de solúvel, mas as inovações cresceram, adaptando-se ao paladar do consumidor. Agora, é a vez da linha premium, que valoriza as origens do grão brasileiro.

Lançada em abril do ano passado, vendeu mais de 1 milhão de unidades no país. Diante da pandemia do novo coronavírus, Rachel acredita que o isolamento pode provocar um descompasso na “gourmetização” do café.

“Isso deve desacelerar um pouco o ritmo que estávamos antes, que era um movimento superacelerado”, avalia Rachel, em entrevista exclusiva à GLOBO RURAL, por telefone, lamentando o fato de não estar em torno de uma mesa tomando café.

Globo Rural O isolamento social reduziu o consumo de café fora de casa, mas as compras domésticas cresceram. No primeiro momento, houve correria para formar estoques. Esse novo cenário pode se estender a longo prazo?
Rachel Muller O aumento na compra de café pode ser atribuído a dois fatores. As pessoas estão mais em casa, e o aumento do consumo de café se torna mais sustentável. O produto está na cultura do brasileiro: numa pausa durante o trabalho, entre uma conversa difícil ou mais bacana. Possivelmente, essa entrevista, se fosse pessoalmente, a gente estaria tomando um café. Eu acredito que o aumento se dá porque as pessoas têm mais oportunidade de preparar esse café e tomar em casa, em vez de estar tomando em outros lugares. Um outro motivo é que o café tem um papel importante de ritual, de normalizar as coisas. É uma relação muito emocional que a gente tem com a bebida, até afetiva. As pessoas estão, sim, em casa tomando café pelo prazer e pelo ritual. São essas duas coisas que justificam essa aceleração no mercado do varejo.

GR Qual a importância do solúvel no mercado? Este segmento cresceu 11% neste ano.
Rachel O café solúvel tem o elemento de praticidade, também tem o trabalho forte da Abics (Associação Brasileira da Indústria de Café Solúvel), que vem fomentando a produção do café solúvel de mais qualidade, especial, o que também contribui para ampliar o consumo dentro do lar. Tem a ver com esse momento, mas também por esse esforço de elevar a qualidade tentando atender a essa demanda do consumidor, que está cada vez mais exigente para várias coisas, e para o café não é diferente. A gente vê o crescimento de cafés especiais em torrado e moído, e também vê em café solúvel.

GR Qual a visão da indústria sobre este cenário de pandemia (crise) e, ao mesmo tempo, alta do consumo? Isso vai perdurar?
Rachel Acho que é um momento de muita incerteza para todos, não só para a indústria, como para as pessoas, para o país. É uma situação única, que nunca vivemos antes. Então, é muito difícil prever o que vem pela frente em termos de consumo. Esse avanço na busca por qualidade no café, começando com o produtor no campo, onde também existe um crescimento na produção de cafés especiais, até a busca do consumidor, não deveria ser um movimento de andar para trás. Uma coisa que é bem fácil de relacionar é que o paladar não retrocede: uma vez que a gente prova um produto que é melhor, é muito difícil depois dar um passo atrás. É um momento bem incerto sim. Mas a indústria também tem esse papel de suportar esses produtores para que esse avanço que a gente teve em qualidade, tanto do café arábica como do conilon, continue no campo. A gente tem 1.079 produtores que conhecemos um por um e trabalhamos juntos para melhorar essa qualidade no campo. Temos a Origens do Brasil (linha lançada em abril de 2019, que já vendeu mais de 1 milhão de unidades no varejo), em que a gente lançou uma linha com cafés torrado, moído e solúvel, na qual temos 81 produtores. Neste momento, a gente tem se mantido ainda mais perto para garantir que os avanços conquistados não deem um passo para trás pela incerteza do cenário. Acho que esse é um papel que a indústria tem para ajudar a passar por esse período da melhor maneira possível.

GR Pode-se esperar um efeito mais profundo na demanda global de café em consequência da recessão global desencadeada pela Covid-19?
Rachel O café solúvel (Nescafé) surgiu quando houve um excedente enorme de café (na crise de 1929). Foi um período também muito difícil para o planeta, mas que deu origem a uma inovação do tamanho do café solúvel, e que hoje o mundo inteiro chama de Nescafé – em português –, uma homenagem ao Brasil, o país onde isso surgiu. Há uma redução do consumo fora do lar, que tem um papel superimportante na experimentação dos cafés especiais e da premiunização. Talvez demore um pouco para voltar aos patamares em que estávamos antes, quando o crescimento era acelerado.

GR Com o dólar alto favorecendo as exportações, compensa ao produtor vender café no mercado interno?
Rachel É uma pergunta muito difícil de responder, porque a gente está generalizando a realidade de milhares de famílias brasileiras. O que posso dizer é que a gente tem o compromisso de trabalhar perto dos produtores para poder ajudar, tanto em termos de suporte técnico como gerencial, para garantir uma sustentabilidade na produção do café. A gente tem um trabalho muito próximo para que as próximas gerações escolham e queiram continuar produzindo café. E aí a gente faz esse trabalho bem próximo, de um por um.

GR Quais são os maiores desafios do setor produtivo?
Rachel As realidades e desafios são tão diferentes que, por exemplo, a gente tem de personalizar o nosso plano cultivado com respeito para poder atender às diferentes necessidades das regiões. Dentro da linha Origens do Brasil, temos produtores de três regiões diferentes: Chapada Diamantina (BA), Alto do Paranaíba (MG) e São Sebastião do Paraíso (MG). E, quando a gente vai ao micro de cada produtor, são necessidades realmente muito diferentes. Alguns já são muito mecanizados, outros trabalham mais manualmentes. O que a gente tenta fazer, e onde conseguimos agregar valor, é que, nesse contato muito próximo, a gente consegue dar uma assistência personalizada às dificuldades daquele produtor.

GR Que critérios vocês adotam para a escolha desses produtores e áreas?
Rachel Na verdade, a gente procurou entregar um produto final de alta qualidade com perfil bem diferente entre si. E também com isso realidades diferentes de produção. A gente tentou compor, priorizando a xícara final, que fosse diferente para que pudéssemos mostrar como um café produzido em diferentes terras brasileiras pode entregar uma xícara final totalmente diferente. A gente está num momento em que o café no Brasil está começando a “premiunizar”. A gente está hoje onde estava a produção de cerveja artesanal, possivelmente, há dez anos. Antes do boom. Nesse momento, é muito importante que, quando um consumidor prova um café de mais qualidade, especial, ele tenha uma boa experiência e consiga ver essas nuances na xícara. Isso tem de ser sentido para que essa questão do valor faça sentido.

GR Os consumidores podem esperar uma nova revolução após esse período desafiador, um produto tão inovador quanto foi o solúvel em 1929?
Rachel Eu acho que ainda tem muito por ser explorado nos métodos de preparo. É uma tendência que vem crescendo. Já cresce bastante em buscas do Google por métodos diferentes. Acho que isso ainda é uma coisa que as pessoas vão curtir e aprender muito mais sobre esse momento, a beleza do preparo do café e da origem. Pode ser diferente, em razão da região onde foi cultivado, do ponto escolhido pelo mestre de torra e do preparo pelo consumidor. Essa parte ainda tem muito a caminhar.

Fonte: Revista Globo Rural (Por Alana Fraga) *Entrevista publicada originalmente na edição de junho/2020 de Globo Rural