Cafeicultura se reinventa para conquistar novas gerações

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Hugo Wolff beneficia o café em sua própria torrefação (Foto: Rogério Albuquerque/Ed. Globo)

Somente em 2018, foram 3 mil quilômetros rodados, do nordeste ao sul do país, na busca pelos melhores grãos de café. A procura do empresário Hugo Wolff, de 36 anos, ex-oficial da Marinha, começou em 2015, quando identificou um mercado a ser explorado, um nicho que levasse em conta não só a demanda crescente do brasileiro por cafés de maior qualidade, mas também a oportunidade de agregar valor à produção da agricultura familiar.  O interesse pela cafeicultura começou em casa, quando o pai, Humberto Jorge, de 64 anos, adquiriu uma pequena propriedade em Ibiraci, no sul de Minas Gerais.

Inspirado pelo pai, Hugo decidiu conhecer a fundo a cadeia do café e, em 2015, criou a Wolff Café, empresa especializada em cafés especiais torrados em grãos, cujos fornecedores são produtores rurais de todas as regiões do Brasil. Em São Paulo, a companhia tem sua própria torrefação, de onde saem os cafés que são comercializados em lojas de todo o país.

“Esse despertar das pessoas para a importância da qualidade e da procedência do café tem impacto social. Nós não precificamos a saca do produtor: é ele quem dá o preço dos seus melhores grãos. Essa é uma forma que encontramos de oferecer excelentes cafés, valorizar a agricultura familiar e ainda estimular a quebra de ciclos de preços que só desestimulam o cafeicultor”, diz ele.

Sebastião de Carvalho Montans, proprietário da Fazenda Nossa Senhora da Conceição (Foto: Rogério Albuquerque/Ed. Globo)

O cafeicultura brasileira vem se reiventando nas últimas décadas, a partir de iniciativas de empreendedores como Hugo Wolff, que hoje se multiplicam pelo Brasil, e os investimentos feitos por produtores, indústrias e cafeterias para levar aos consumidores grãos de qualidae superior e várias opções para saborear um bom café, seja o coado tradicional, das máquinas de expresso ou as cápsulas.

Se o produtor mineiro Sebastião Pimenta perguntasse há 30 anos qual o tipo preferido de café de um de seus consumidores finais, provavelmente a resposta seria simples: mais forte ou mais fraco. Já o filho dele, o produtor Sebastião de Carvalho Montans, de São Sebastião do Paraíso (MG),  que assumiu o negócio após o falecimento do pai, quando hoje faz a pergunta, já sabe que a resposta poderá ser de uma variedade infinita: expresso, solúvel, moído em casa, com notas específicas, blends diversos – e tantas mais.

A mudança de comportamento de um consumidor cada vez mais exigente quanto à qualidade do produto que consome, no entanto, não exigiu uma reinvenção da maneira de produzir café somente na Fazenda Nossa Senhora da Conceição, em São Sebastião do Paraíso, no sul mineiro, mas também uma mudança completa em técnicas de manejo, de industrialização e comercialização do café no Brasil nas últimas décadas.

Vista da Fazenda Nossa Senhora da Conceição, em São Sebastião do Paraíso (MG) (Foto: Rogério Albuquerque/Ed. Globo)

O economista José Roberto Mendonça de Barros lembra que o café tinha consumo restrito porque era considerado uma bebida para pessoas mais velhas. Os jovens apreciavam bebidas gaseificadas, como os refrigerantes, e por isso a perspectiva para o futuro da cafeicultura não era das melhores. Duas inovações, porém, mudaram o curso da história: o desenvolvimento da máquina de café expresso pelos italianos, no final da década de 1940, e o surgimento das cafeterias no mercado americano.

“A grande variedade de aromas e sabores propiciada pelas máquinas de expresso e o fato de as cafeterias se apresentarem como um espaço de descontração para consumo do café fora do trabalho começaram a atrair os jovens. Houve um rejuvenescimento do consumidor e, portanto, do produto e sua apresentação”, afirma José Roberto.

No campo, a necessidade de readequação foi urgente. As transformações são observadas no plantio, colheita e secagem. O produtor passou a priorizar a uniformidade dos grãos e a respeitar a melhor época para colheita, de modo a não comprometer a qualidade. É o que explica Nathan Herszkowicz, presidente executivo do Sindicato da Indústria de Café do Estado de São Paulo (Sindicafé).

“Hoje, o produtor deve conhecer profundamente as técnicas e os princípios da boa colheita e maturação, o que depende da adubação. Ele já sabe que após colher deve levar o grão para os terreiros rapidamente, se não pode fermentar. Se o café não receber a mesma quantidade de sol e vento, o resultado não é bom”, diz ele.

Em Minas Gerais, Sebastião Montans, terceira geração cafeicultora da família, é um exemplo dessas transformações. Antes, conforme lembra, o pai colhia tudo e, somente ao fim do dia, os grãos de arábica eram levados para o terreiro.

Certificado, o café Montans é vendido a exportadoras como Illycaffè e Cooxupé e também comercializado em cafeterias de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.

A fazenda também é uma das fornecedoras da Nestlé no Brasil. Ela faz parte do Nescafé Plan, programa implantado em 2011 no país para fomentar o desenvolvimento de produtores locais em um padrão de produção que atenda às especificações de sustentabilidade. Entre os critérios avaliados estão questões trabalhistas, ambientais, de qualidade e gestão da propriedade. Ao todo, são 690 produtores no Brasil participantes do programa.

Luís Carlos Gomes, produtor de arábica e conilon em Santa Teresa (ES) (Foto: Ronaldo Rufino/Ed. Globo)

Para Pedro Malta, head de agricultura da Nestlé Brasil, o programa vem ao encontro do anseio do consumidor de café brasileiro. “É cada vez mais clara a demanda do consumidor por um café de qualidade e com valor agregado, e não apenas um produto razoavelmente bom, vendido em uma embalagem bonita”, avalia.

Esta também é a premissa da Suplicy Cafés Especiais, rede de cafeterias nascida em São Paulo, que, segundo seu proprietário, Marcos Suplicy, realiza um trabalho de garimpo na busca pelos melhores cafés, nas variadas regiões brasileiras. “Quando começamos, em 2003, o café perante o consumidor não era um desconhecido, somos número um em consumo mundial, mas a qualidade quase que inexistia e era um nicho a ser conquistado”, explica.

Nas 21 lojas espalhadas por São Paulo, Campinas, Brasília e Rio de Janeiro e nos 150 pontos de vendas, o consumidor é apresentado predominantemente ao café arábica de regiões como o Cerrado e Chapada mineiros e da Alta Mogiana, em São Paulo. Os grãos verdes são armazenados e torrados sob encomenda. Além da procedência, também são apresentados os nomes das fazendas fornecedoras e sua variedade botânica. A projeção é que sejam inauguradas pelo menos mais cinco lojas ainda em 2019.

CONILON ESPECIAL
Para muitos clientes, talvez passe despercebido, mas há um conilon capixaba no meio dos pacotes de arábica disponíveis na premiada cafeteria paulistana Coffee Lab. “Comprei porque ele é bom”, resume Isabela Raposeiras, fundadora do empreendimento e um nome respeitado no setor de cafés especiais no Brasil.

“Nosso primeiro preceito é qualidade, e o trabalho desse produtor é excelente.” O produtor em questão, Lucas Venturim, é um dos destaques no movimento crescente de cafeicultores do Espírito Santo que buscam fazer conilon de alta qualidade — e assim agregar valor à saca.

É preciso, primeiro, contradizer décadas de má fama do grão capixaba, que carrega o estigma de bebida inferior e de opção usada pela grande indústria na produção do solúvel e para baratear blends. “O que se difundiu como sabor do conilon é o sabor dos defeitos dele quando colhido verde e seco na fumaça, com fogo direto”, explica Lucas.

No opinião do produtor, o problema não é a espécie: é que não havia foco em qualidade (conilon, ou robusta, é uma variedade da espécie Coffea canephora, enquanto arábica é Coffea arabica). “Tem gente que gosta de banana-prata, tem gente que gosta de banana-nanica, tem gente que gosta de banana-maçã. O que não dá é para comparar banana madura com banana verde”, diz ele.

Cafezal no município de Santa Teresa (ES) (Foto: Ronaldo Rufino/Ed. Globo)

Em São Domingos do Norte (ES), Lucas e o irmão Isaac resolveram provar que, bem cuidado, o conilon pode dar café bom de beber até puro. Para isso, visitaram fazendas de arábica especial a fim de identificar o que se fazia de diferente por lá. Era muita coisa.

De volta para casa, começaram as transformações pela lavoura. Baseados em pesquisas do Incaper, o Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural, plantaram clones com diferentes tempos de maturação, divididos por linhas — dessa forma, estenderam o período da colheita, que é manual, e facilitaram a seleção dos grãos maduros. Também mudaram o critério de escolha de variedades: se antes o foco era produtividade, agora está na análise da bebida na xícara.

No pós-colheita, os irmãos investiram na estrutura de processamento, com maquinário para lavar, separar, descascar, secar e pilar (tirar o pergaminho). Grãos boias (secos no pé), verdes e maduros não são mais misturados na secagem, feita em tambores rotativos, com fogo indireto (para evitar contaminação por fumaça) e sem pressa: temperaturas mais baixas e pausas durante o processo fazem com que chegue a demorar dez vezes mais do que em outras fazendas da região. Há ainda terreiros suspensos para microlotes.

Em 2018, da safra de 4.300 sacas, cerca de 80% tiveram nota de pelo menos 80 pontos, na escala da SCA (Specialty Coffee Association), sendo assim classificadas como café especial e vendidas acima do preço de commodity.

Alguns lotes entram em tanques de fermentação, às vezes com adição de leveduras de vinho ou de pão, para agregar notas de sabor. E foram justamente esses lotes que renderam à fazenda o segundo, o terceiro e o quinto lugares na categoria canéfora do prêmio Coffee of the Year, realizado na Semana Internacional de Café de 2018, em Belo Horizonte.

Os irmãos Lucas e Isaac Venturim (Foto: Rogério Albuquerque/Ed. Globo)

CAFÉ TROPICAL
Também foi parte desses lotes que Isabela Raposeiras comprou: ela levou dez sacas, por R$ 1.500 cada. No site do Coffee Lab, um pacote de 250 gramas do café torrado custa R$ 45 e traz a descrição “muito frutado, com aroma forte de caramelo e algo que lembra barril de carvalho”.

Os bons resultados de hoje são consequência de um plano de dez anos que a família começou a implementar em 2007. O trabalho já aparecia nos grãos, mas faltava contar para o mundo. “A gente começou a sair da porteira há dois anos, para ficar mais perto do consumidor e do torrefador”, diz Lucas Venturim. Com isso, ele conseguiu exportar para a Rússia, a Austrália e a Alemanha, além de vender para cafeterias e microtorrefações brasileiras.

Os Venturim foram os primeiros do setor a ingressar na Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), que só em 2018 passou a admitir o conilon. Os segundos a entrar na associação foram os Orletti, grupo familiar que produz mais de 100 mil sacas de café na região de Pinheiros, no norte capixaba, e investiu em uma estrutura de beneficiamento com capacidade para produzir 10 mil sacas ao ano de cereja descascado. “Acreditamos em um mercado de conilon especial”, diz Thiago Orletti, diretor comercial da Robusta Coffee, empresa de exportação do grupo. “Em 2018, não cobrimos a demanda por falta de produto.”

Segundo Thiago, a meta para 2019 é vender de dez a 12 contêineres desse café de alta qualidade — por enquanto, há dois pedidos para a Europa e outros em negociação. Ele tem também uma meta mais abstrata: valorizar o café tropical de baixa altitude, como o da Fazenda Victorio Orletti, 150 metros acima do nível do mar.

Luiz Cláudio de Souza, produtor de conilon em Muqui, no sul capixaba (Foto: Rogério Albuquerque/Ed. Globo)

Tradicionalmente, o conilon é plantado em áreas abaixo de 500 metros. Mas, nas montanhas do município de Santa Teresa, na Serra Capixaba, Luís Carlos Gomes produz arábica e conilon especiais e diz que o último, posicionado a uma altitude de 680 metros, “vai bem, obrigado”.

Atualmente, o conilon responde por 25% dos cafezais de Luís, mas gerou 50% da safra de 3.270 sacas em 2018 — a tendência é aumentar essa área. “Dá mais sustentabilidade, porque ele produz muito mais do que arábica e o custo é menor”, diz Luís, que recentemente instalou terreiros suspensos do lado de casa, no antigo curral, para facilitar o manuseio de microlotes. “Está acontecendo uma evolução e a gente não pode cochilar, tem de aproveitar a onda.”

Também em uma área considerada alta, a 600 metros de altitude, Luiz Cláudio de Souza, de Muqui, no sul capixaba, começou a trocar o arábica pelo conilon em 2005 e hoje mantém só uma pequena faixa da primeira espécie. Com a nova cultura, ganhou concursos de qualidade da cooperativa local, a Cafesul (Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo) e, em 2018, se classificou em primeiro lugar entre os canéforas do Coffee of the Year. Seu café, processado pelo método natural (sem descascar antes de secar), obteve 88 pontos.

O lote premiado de 20 sacas corresponde a 20% da produção do ano passado, colhida à mão por Luiz e um funcionário temporário e seca em terreiro coberto. O produtor diz que não existe receita de bolo para o café especial, mas credita o bom resultado à escolha das variedades, à localização — a altitude retarda a maturação e prolonga a formação de sabores e aromas — e aos cuidados com o processo, da lavoura ao pós-colheita.

Seu café premiado já viajou para São Paulo (para ser vendido no Santo Grão, com o rótulo 100% arábica) e para Berlim (no evento World of Coffee, levado pela cooperativa). E, tanto quanto a remuneração, com sacas vendidas entre R$ 650 e R$ 1.000, Luiz diz se importar com o reconhecimento. “Eu sem o café não sou nada. É ele que está me levando para longe.”

Fonte: Revista Globo Rural (Por Thaisa Visentin e Mariana Weber | Fotos: Rogerio Albuquerque e Ronaldo Rufino)

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