Revisitando as “Estatísticas” de Consumo Interno

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No espaço dessa coluna já houve ocasião em que pude analisar a problemática dos números envolvendo o consumo interno de café (torrado e moído, torrado em grãos e solúvel). No artigo sob o título: "O castigo da opulência", trouxe a tona divergência entre os dados levantados pela NIELSEN e os contabilizados pela ABIC, tratando por enfatizar que a diferença nas metodologias de apuração dos números era a causa, em parte, das divergências observadas. Todavia, também questionei se não poderia haver algum erro de estimativa numa das fontes uma vez que os sinais das tendências eram, naquela altura, trocados 1

A metodologia empregada ABIC na geração de suas estimativas contabiliza a quantidade processada pelas torrefadoras sócias da entidade (informados por meio de levantamentos internos) somada a industrialização efetuada pelas solubilizadoras. Esses dois componentes da equação aparentemente são os menos distorcidos, embora o procedimento declaratório utilizado possa introduzir severos vieses na estimativa. A essas duas estimativas, os técnicos da entidade agregam arbitrariamente a quantidade industrializada pelas torrefadoras não-associadas, acrescida pelo processamento ocorrido em âmbito das propriedades rurais.

O número gerado pela entidade de classe tem uma linearidade invejável. A evolução do consumo doméstico é algo que exibe trajetória ascendente quer os preços vigentes no mercado, conjunturalmente, subam ou caiam. Trata-se de uma trajetória verdadeiramente luminosa e apolínea. Excetuando-se o período novembro de 2002 a outubro de 2003, desde 1990 o consumo interno exibe expansão positiva (Figura 1).

Figura 1 – Consumo interno de café, novembro de 1990 a outubro de 2009, Brasil – Fonte: Associação Brasileira da Indústria do Café2.

As estimativas da ABIC parecem que são paridas com o sacrossanto consentimento do "mercado". Desconheço analista do agronegócio café brasileiro que não utilize sem qualquer crítica tal estimativa na preparação de balanços entre a oferta e demanda visando a construção de cenários para os preços e abastecimento. Quando se percebe alguma inconsistência nos resultados obtidos, invariavelmente, o desvio somente pode vir da estimativa da previsão de safra e jamais da bendita e imaculada estimativa produzida pela associação. A adulação reverbera ainda mais quando as famigeradas metas de consumo são apresentadas para o debate como as: 15 milhões de sacas em 2000 (iniciada em 1995 se não me engano) e 20 milhões de sacas em 2010 (desencadeada por volta de 2006). A história pregressa mostra que nenhumas das previsões se concretizaram dentro do horizonte imaginado, revelando que o empenho visava exclusivamente à atração do interesse da mídia especializada, fato absolutamente legitimo em se tratando de associação de classe.

Em parceria entre PNUD/CONAB-IEA/CATI3, desenvolve-se no Estado de São Paulo o projeto de previsão de safra de café. Valendo-se de questionários estruturados, 40 agrônomos da Secretaria da Agricultura e Abastecimento efetuam entrevistas com 620 cafeicultores sorteados segundo procedimento amostral probabilístico, ou seja, como erro conhecido e possibilidade de expansão dos resultados para toda a população de cafeicultores paulistas.

No levantamento de agosto de 2010, foi deliberadamente introduzida questão sobre o autoconsumo e industrialização para a venda realizada da "porteira para dentro" nas propriedades rurais (Tabela 1).

Tabela 1 – Cópia Fax Símile da Pergunta do Questionário, Previsão de Safra de Café, Estado de São Paulo, jul.-ago./2010

Fonte: Questionário da pesquisa.

As duas questões sobre as quantidades e a relativa aos preços recebidos pelos cafeicultores (para o caso daqueles que exibiram resposta na questão 7.2), exibiram os seguintes resultados (Tabela 2).

Tabela 2 – Quantidade e valor do café autoconsumido e/ou processado comercializado pelos cafeicultores paulistas, ago.2010

Fonte: Questionário da pesquisa.

Para se aferir o grau de consistência da informação obtida pelo levantamento, efetuou-se cálculo estimado a partir da população de cafeicultores em atividade no estado. Em São Paulo, exploram comercialmente a cafeicultura 17.000 produtores. Adotando como tamanho médio das famílias quatro pessoas e que são consumidas quatro doses por dia por todos os membros da família e em todos os dias do ano, e ainda, que cada saca de café verde renda 48kg de T&M (quebra de 22% em peso) suficiente para preparar 5.000 doses, a quantidade de café necessária para suprir essa população seria de 25,4 mil sacas de café verde, ou seja, pouco mais de 5 mil sacas acima do dado obtido pela pesquisa objetiva.

Tomando-se o consumo rural dos cafeicultores paulistas como 20 mil sacas de café verde ao ano e assumindo que a produção no estado represente apenas 10% da oferta nacional do produto; o consumo rural por parte dos cafeicultores deva se situar próximo das 200 mil sacas ao ano, ou seja, 800 mil a menos do que o número adicionado na estimativa elaborada pela entidade de classe dos torrefadores.

Cinturões produtores como do cerrado baiano e na amazônia rondoniense, a dificuldade em acessos associada as nucleações urbanas ainda pouco desenvolvidas, permite-se inferir que o consumo rural por parte dos cafeicultores seja algo maior do que o contabilizado entre seus congêneres paulistas. Ainda assim, não se deve esperar saltos espetaculares no consumo dessas populações mais isoladas.

A sobre-estimativa originada no consumo rural de café T&M pode não ser caso isolado dentro do número elaborado pela ABIC. As quantidades produzidas pelas torrefadoras não associadas e os torrefadores que atuam na informalidade também são estimadas e acrescentadas ao valor global apurado. Nesse capitulo as distorções podem ser ainda maiores.

Já se tornou lugar comum o ataque histriônico aos números contabilizado pelas previsões de safra, especialmente a de café. Os "analistas" do mercado fazem suas continhas (produção, exportação, consumo, estoques) e percebem que falta café no Brasil. Buscar outras fontes de distorção está fora do script! Santa ingenuidade. Por isso estava certa minha avozinha portuguesa quando dizia: "está metade do mundo a enganar a outra metade". A pena é que só agora, mais velho, sou capaz de perceber a lucidez desse provérbio.

1Nos levantamentos declaratórios sobre desempenho industrial existe tendência para se superestimar os resultados numa tentativa de sacar uma imagem mais atraente da empresa do que aquilo que realmente está se passando.

2 disponível em www.abic.com.br

3Estudo integrante do projeto CONAB/CATI/IEA, Carta Acordo n.10.971/2010. Os autores agradecem a equipe da CATI que ativamente colabora com o êxito desse projeto. A metodologia para obtenção dos dados primários foi baseada em desenho de amostra probabilística estratificada dos informantes do Levantamento Censitário de Unidades de Produção Agropecuária 2007/08 (Projeto LUPA).

Fonte: CaféPoint

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