Escassez de funcionários põe em risco banco de germoplasma de café do IAC

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Os olhos esverdeados da cientista brasileira Maria Bernadete Silvarolla ressaltam ainda mais com as bochechas pálidas agora vermelhas de sol. O suor desce pela testa, que ela tenta inutilmente secar com as costas das mãos sujas de terra, sua roupa está tomada por carrapichos, mas esses parecem ser problemas menores.

Uma das principais melhoristas genéticas do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), vinculado à Secretaria de Agricultura de São Paulo, Bernadete exaspera-se ao ver o matagal avançar e asfixiar décadas de pesquisa no cafezal que lhe rendeu a "descoberta" da primeira variedade do grão naturalmente com baixo teor de cafeína. Ela arranca sozinha o mato e amaldiçoa o dia em que seu nome saiu na "Nature", a revista científica mais prestigiada do mundo. "Eu deveria ter tacado herbicida e matado tudo isso naquela época. É um descaso total".

Por falta de dinheiro e a impossibilidade de contratação de funcionários temporários, o IAC vê o seu banco de germoplasma de café – arquivo vivo de todo o material genético do grão – ameaçado pelo mato que cresce mais rápido com as chuvas e o calor do verão. Não há quem faça a roçada do mato.

Com 30 anos dedicados à pesquisa, Bernadete concorda em ser fotografada apenas de costas no cenário desolador do cafezal. A cena escancara a distância entre a realidade e as ambições do governo estadual de transformar São Paulo numa "referência científica".

"Estamos enxugando gelo. Arrancamos mato daqui, à tarde chove e amanhã nasce mato de novo", diz Júlio César Mistro, melhorista de café do IAC como Bernadete.

A escassez de mão de obra torna a situação dramática nos 60 hectares de café da Fazenda Santa Elisa, principal área de pesquisa com o grão, localizada em pleno centro de Campinas. A lei brasileira proíbe órgãos públicos de terceirizar esse tipo de serviço por entender que a tarefa constitui a chamada "atividade-fim" – aquela que caracteriza a atividade principal. "É como se você tivesse R$ 10 mil no banco mas a sua conta está bloqueada", afirma Sérgio Augusto Carbonell, pesquisador que hoje ocupa o cargo de diretor do IAC.

A única forma de ampliar o quadro é através de concurso público. O último foi feito há seis anos para profissionais de apoio e há 12 anos para pesquisadores. Um novo concurso estava previsto para este ano, mas, sem verba, o Estado o cancelou.

O engessamento aparece nas planilhas de estatísticas do órgão. Dos 281 servidores do IAC (desde auxiliar de serviço geral a administrativo, excluindo pesquisadores), somente seis estão alocados na cultura cafeeira. E dos seis, dois revezam a tarefa de capinar uma área total de 60 hectares – 30 do banco de germoplasma e 30 de experimentação com café. "Idealmente", afirma Carbonell, "seriam necessários de dois a três ajudantes de campo por pesquisador. E ainda temos um quadro envelhecido, em que muitos servidores já se aproximam da aposentadoria".

Maior produtor e exportador mundial de café, o Brasil deve muito de sua projeção ao IAC, fundado por D. Pedro II em 1887. Estima-se que 90% do café plantado no país seja de cultivares desenvolvidas pelo instituto.

O banco de germoplasma do IAC é não só o maior no país como o mais diverso. Há exemplares de quase todos os países, somando 5,5 mil acessos – o jargão científico para cada árvore e suas características genéticas únicas. Nenhuma árvore é desprezada: o que parece ruim hoje pode ser a resposta a uma demanda no futuro. Graças a esse grande banco genético, a pesquisadora Bernadete identificou uma variedade com quase nada de cafeína "perdida" entre centenas, no momento em que o café descafeinado virou moda.

Diferentemente de outras culturas, porém, sementes de café não são mantidas em câmaras frias. Elas perdem o vigor após um ano. A única forma de preservar a genética é plantando, o que torna as pesquisas especialmente vulneráveis.

Segundo o IAC, o café continua sendo prioritário. "Só que eu não posso liberar recurso pra capinar sabendo que em três meses o mato vai ter crescido de novo. É queimar dinheiro", diz Carbonell. "Eu também não posso deslocar o meu recurso humano porque não tenho só café. Tenho cana, feijão, trigo, citros, mamona, milho para cuidar".

A esperança, afirma, está em um projeto de lei (PL) do Congresso (77/2015) que traria celeridade e flexibilidade à administração direta com fins de pesquisa e inovação. O PL aguarda sanção presidencial.

Apesar do empenho do instituto, há áreas em que o mato ultrapassa exemplares antigos. Segundo Bernadete, 50% da coleção etíope, origem do café de baixa cafeína, já foi perdida. "O capim compete por água, nutriente e luz".

Há dois meses, os pesquisadores começaram a pulverizar as ruas do cafezal – linhas que separam uma fileira de árvores da outra – com herbicida, mais eficiente que a capinagem. Mas por falta de gente, até essas aplicações são restritas.

Responsabilidade também é de produtor e da indústria, afirma diretor
A falta de recursos para cuidar do maior germoplasma de café do Brasil não é responsabilidade apenas do Estado. Indústria e cafeicultores também têm participação no quadro de deterioração do banco genético do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). A crítica é do diretor do IAC, Sérgio Augusto Morais Carbonell, para quem falta diálogo e organização da cadeia produtiva.

"Há um discurso de todo o segmento dizendo que germoplasma é a coisa mais importante do mundo, mas não se vê aproximação de discurso e ação. Temos 30 projetos de café, mas nenhum envolve manutenção de germoplasma", diz.

"De mil acessos [plantas] no germoplasma, 50 são bons, outros são medianos e muitos são ruins do ponto de vista de uma característica genética desejada. E somos obrigados a manter todos porque o que é ruim hoje, amanhã pode ser bom. Mas o setor produtivo só quer pegar o bom, o que lhe interessa – e rápido. Não há a noção de que é preciso fortalecer a infraestrutura de base para que a parte científica possa agir", afirma o diretor.

Carbonell diz que essa falta de compreensão se explica, em parte, pela falta de uma política para setor, capaz de orientar o que é prioritário e canalizar os aportes. O que há hoje, afirma, são projetos individuais, cada qual com interesses próprios.

Segundo ele, nem o Consórcio Pesquisa Café, montado nos anos 1990 para criar um projeto nacional de pesquisa e desenvolvimento de café, avançou nessa visão de cadeia produtiva. "O que temos hoje? Um fundo, para onde vai parte do dinheiro arrecadado com venda de café, que financia uma carteira de projetos baseados em editais. Mas cada pesquisador faz o que acha importante. Então o consórcio é uma reunião de projetos".

Em 2015, o IAC teve orçamento de R$ 73,7 milhões, montante que tem se mantido no mesmo patamar nos últimos anos. Apenas metade vem do Estado, o resto de parcerias e convênios. Questionada, a Secretaria de Agricultura afirmou que tem cobrado o apoio das entidades do setor para obtenção de recursos para a conservação do germoplasma.

ContextoBatizada de "AC", em homenagem a Alcides Carvalho, considerado o maior melhorista de café do Brasil, a variedade de café do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) tem apenas 0,1% de cafeína, quase nada se comparada aos grãos tradicionais de arábica (1,2%) e robusta (2,4%). A característica foi encontrada em três exemplares do banco de germoplasma do instituto, e atingiram esse teor mínimo de cafeína por meio de mutações com grãos arábica. A pesquisadora Maria Bernadete Silvarolla analisou perto de 3 mil plantas entre 1999 e 2003. Em 2004, veio a surpresa. Desde então, o desafio tem sido tornar a variedade "AC" comercialmente viável, elevando a sua produtividade. Enquanto uma boa média é de 20 a 30 sacas de café colhido por hectare, a grão com baixa cafeína rende, no máximo, 10. Um trabalho que pode durar anos.

Abandono e desolação

Coberto de mato, o cafezal da Fazenda Santa Elisa, em Campinas, compõe um cenário desolador. Ali, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), do governo do Estado de São Paulo, descobriu a primeira variedade do grão com baixo teor de cafeína, feito propalado pela "Nature", a revista científica mais prestigiada do mundo. Hoje, por falta de dinheiro e sem poder contratar funcionários, o IAC vê ameaçado o seu banco de germoplasma de café, arquivo vivo de todo o material genético do grão. (Foto: Cláudio Belli/Valor)

Fonte: Valor Econômico (Bettina Barros) via CNC

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