As mãos que nos apanham o café

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De pai para filho, de avô para neto, de sogro para genro. No Brasil, o maior produtor de café do mundo, continuam a dominar as fazendas familiares

Chamam-lhe árvore, mas mais parece um arbusto aperaltado. As suaves montanhas que rodeiam a vila de Carmo de Minas, no Estado brasileiro de Minas Gerais, estão pejadas destas plantas frondosas, de tronco escondido pela ramagem densa e pouco maiores que um homem. Entre o verde-escuro das folhas espreitam milhares de esferas amarelas, a vergar os ramos com o seu peso.

Um homem moreno aventura-se pela folhagem de uma árvore, estica o braço direito e agarra a base de uma pernada, com o à-vontade de quem nunca fez outra coisa na vida. Álvaro Pereira Coli, 48 anos, leva a mão gretada a deslizar ao longo do ramo. Dois segundos depois, segura um punhado de grãos, que logo verte para dentro de um cesto. O gesto será repetido por ele e outros nos próximos meses, até se encherem mil sacas de 60 quilos cada. Quantos destes grãos acabarão torrados, moídos e degustados numa chávena de café do outro lado do Atlântico, a 8 mil quilómetros de distância?

Minas Gerais é o grande berço de café o Estado de onde vem a maioria dos grãos do país que é, por sua vez, o maior produtor e exportador do planeta (e segundo maior consumidor, depois dos EUA). No ano passado, o Brasil colheu 2,9 milhões de toneladas, a partir de 6,9 mil milhões de árvores, o que equivale a um terço do total mundial. A área de cultivo ultrapassa os 23 mil quilómetros quadrados (praticamente como se todo o Alentejo estivesse coberto de cafeeiros), mas as propriedades são muito fragmentadas: há 274 mil fazendas de café no país, e 71% têm menos de 10 hectares, o que faz delas propriedades relativamente modestas até para os parâmetros de um país como Portugal, quase cem vezes mais pequeno do que o Brasil.

A saída possível
Álvaro Pereira Coli é o dono do Sítio da Torre, uma fazenda com 35 hectares de café, a 1 200 metros de altitude, com vista para Carmo de Minas. "O meu bisavô veio de Itália para o Brasil em 1860. Começou no comércio e depois passou para a agricultura, no café. Os meus avós e os meus pais continuaram o negócio." Álvaro cresceu no meio de cafeeiros. Aos oito anos, a mãe já o levava para o campo, na altura da colheita. "De manhã, estudava. À tarde, apanhava café."

Em 1995, os pais entregaram-lhe a fazenda. Em 2003, no entanto, a longa história da família Pereira Coli no ramo esteve a um passo de terminar sem glória. "A gente produzia café normal, mas os preços baixaram muito. O único jeito era ir para os cafés especiais, mais caros." Nesse ano, por coincidência, nasceu o projeto AAA, da Nespresso (empresa que convidou a VISÃO a conhecer as plantações de café no Brasil) um programa de qualidade e sustentabilidade, que incentiva práticas amigas do ambiente e dá apoio aos agricultores, culminando com um pagamento extra por produto considerado superior. Apenas 1% a 2% de todo o café produzido no mundo entra neste patamar.

O Sítio da Torre entrou assim no mercado dos cafés de alta qualidade, aproveitando as orientações e os incentivos da multinacional, sobrevivendo à hecatombe que dizimou milhares de produtores. "Animámo-nos, começámos a vencer concursos… O nosso café chega a ser pago ao dobro do preço." O truque, diz, é acompanhar de perto a evolução dos cafeeiros, fazer análises constantes aos solos e garantir um bom tratamento dos grãos após a colheita.

Hoje, a fazenda de Álvaro dá trabalho à sua família mais próxima – três irmãs e os respetivos maridos. E emprega mais 25 a 30 pessoas nos três a cinco meses que dura a colheita. A agricultura, com o café à cabeça, é o motor de desenvolvimento da região: 70% do rendimento de Carmo de Minas vem da lavoura, puxando o resto da economia local. "Durante a colheita, o supermercado de um cunhado meu, na vila, aumenta o rendimento em 50%", garante Álvaro.

Sem estragar a natureza
A recente especialização de muitos agricultores em café gourmet levou ao aumento do salário médio e abrandou a sangria de trabalhadores, que nas últimas décadas têm trocado o campo pelas cidades. Mas a entrada no clube AAA obriga a uma reformulação da forma de operar. "O mais difícil é mudar mentalidades", explica Cláudia Leite, embaixadora de café da Nespresso para a América Latina. "Aos poucos, a influência vai passando de vizinho para vizinho. Um produtor acaba por se render ao ver que o do lado está a produzir melhor café e com mais retorno." Em média, um agricultor AAA tem receitas 46% superiores aos outros. Os preços acima do praticado pelo mercado não são uma questão de altruísmo quando a produção de café de qualidade deixar de ser atrativa, os agricultores mudam para atividades mais rentáveis e as grandes empresas de café ficam sem produto.

Entre as regras mais apertadas estão as ambientais. Há 90 critérios de sustentabilidade, desde medidas contra a erosão e de gestão da água à defesa da vida selvagem. "Não atingimos ainda o ideal, mas é possível conciliar a produção com a preservação, sendo mais eficientes na utilização de recursos naturais e agroquímicos." Isto não significa optar pela produção biológica, que não é necessariamente mais amiga do ambiente. Para evitar usar pesticidas, é preciso limpar mais as ervas (obviamente, com recurso a máquinas), o que leva à emissão de mais dióxido de carbono. Além disso, garantem especialistas brasileiros em café, não há relação entre o biológico e a qualidade do produto. Nem ao nível do sabor.

Surpreendentemente, as normas ambientais têm-se revelado de fácil aceitação. "Os fazendeiros querem deixar um negócio saudável aos filhos e já entenderam que têm de preservar o ecossistema", diz Vinicius Scarpa, 32 anos, engenheiro agrónomo que dá apoio técnico aos produtores da região.

Álvaro Pereira Coli não esconde que tem esse sonho: ver o seu negócio do café (um dos mais premiados de Minas Gerais) chegar à quinta geração, através de um dos dois filhos. "Obrigo-os a estudar. Se um dia ficar difícil, que já tenham um diploma para fazerem outra coisa. Mas gostava que o futuro deles passasse pelo café. A gente até os leva aos prémios, para os incentivar." Pelo menos com o filho, de 5 anos, parece resultar: o miúdo segue-o pelo terreiro de secagem dos grãos, ouvindo-o falar apaixonadamente sobre café, com o mesmo brilho nos olhos.

Fonte: Visão Verde (Portugal)

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